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  • Foto do escritorYanara Miranda

CHÁ REVELAÇÃO: práticas culturais que reforçam o sexismo

Como mostrar para uma sociedade sexista, que aplaudir um pênis ou uma vagina e vulva do novo ser humano em formação, é uma forma sociocultural de produzir um determinado ideal de sujeito em nossa sociedade: heterossexual, branco, cristão - que segrega outras formas de existência? Sinto que é necessário, tentar.


bell hooks sempre gostou de deixar explícito que todos os pensamentos e todas as ações sexistas são problemas, independentemente de quem os perpetua ser mulher ou homem, criança ou adulto. Porém, a maioria das pessoas não sabe o que é sexismo, não entende o sexismo ou se entende, pensa que ele não é um problema.


“Partimos do entendimento de que as celebrações dos “chás de revelação” produzidas e compartilhadas na/em rede merecem uma reflexão atenta e cuidadosa porque dizem respeito à forma como as heteronormas de gênero colocam em funcionamento e manutenção um conjunto de reflexões que moldam concepções de sujeito e de mundo”. Paula Rios de Freitas, Dilton Ribeiro Couto Junior e Felipe Carvalho

Nossa sociedade perpetua a crença de que os órgãos genitais definem se a pessoa é homem ou mulher, mas a construção da nossa identificação como homem ou como mulher não é um dado simplesmente biológico. Vai muito além de ter uma vagina vulva ou um pênis, para se entender como homem ou como mulher. Além de já termos o conhecimento sobre outras maneiras de existência.


Na antropologia, o conceito de cultura se refere ao conjunto de crenças, valores, práticas, conhecimentos e outros elementos simbólicos e materiais produzidos, transmitidos e transformados pelos seres humanos em suas sociedades. Isso inclui as instituições sociais, a arte, a literatura, a religião, o idioma, os costumes e a tecnologia. A cultura é o que distingue uma sociedade de outra e é o resultado da interação dos indivíduos com o meio ambiente e com os outros membros da sociedade.


É por meio da cultura que os seres humanos aprendem as normas e os valores que orientam o seu comportamento e lhes permitem participar da vida social. A cultura também pode ser um fator de mudança social, pois é por meio dela que as novas ideias e práticas são transmitidas e incorporadas na sociedade.


Pois então, desde que Jenna Karvunidis em 2008 nos Estados Unidos, cortou um bolo em que o recheio era cor de rosa, para anunciar que seu bebe tinha uma vagina e vulva, esses eventos se tornaram constante, se instalando como prática cultural. Consideramos que toda festa é um rito social importante, os “chás de revelação” não poderiam ser diferentes.


Parece ingênuo e lúdico, como muito de tudo que envolve o mundo infantil e o sexismo. Mas a mensagem ao realizar uma celebração, onde se convida familiares e amigos, em volta do objetivo de revelar a genitália do bebe, não é nada inofensivo. “Os “chás” são partes de projeto de masculinização dos meninos e de projeto de feminilização das meninas, os quais são constituídos por práticas culturais que tentam generificar os corpos das crianças, desde muito cedo, a fim de adequá-las às normas binárias, cisgênero e heterossexuais vigentes na contemporaneidade. O “chá de revelação” torna-se um rito de passagem, no qual o feto se torna bebê generificado.”


Tem uma narrativa sendo alimentadas nessa atitude, passada para a sociedade, que contribuem para afirmar uma única forma aceita de vivenciar nossa existência, reforçando o discurso nocivo da LGBTfobia, e que “negligencia o gênero em um indivíduo que ainda não teve contato com os significados sociais e culturais constitutivos da identidade de cada sujeito”.


"Narrativa é poder. É através dela que contamos histórias e apontamos ponto de vista. Não está só na escrita. Está em tudo, principalmente em criação e execução de símbolos e signos." Rodrigo França  

A família e/ou as/os amigas/ os baseiam-se no exame de sexagem fetal para planejar criteriosamente a vida de uma criança ainda em gestação, indo da escolha da cor do quarto à roupa que o bebê usará no dia a dia. Esse exame ecográfico é capaz de gerar expectativas que serão materializadas posteriormente em brinquedos, cores, modelos de roupas e projetos para o/a futuro/a filho/a. Esse enquadramento revela uma lógica ficcional em que ser homem e ser mulher corresponde a uma série de normas e de papéis socioculturais reiterados, ensinados e aprendidos cotidianamente.


Cachoeiras pintadas, pombos descoloridos, água da descarga tingida. Ou uma explicita masculinidade toxica, quando o resultado da revelação corresponde ao tão desejado pênis, ou a frustação de ser uma vagina e vulva. Ou ainda, uma tentativa frustrada ao trocar as cores rosa e azul, por roxo e verde, ou bege e marrom. Tudo isso, continua a dizer a mesma coisa para a sociedade. Não é curioso que só vemos casais heterossexuais realizando essas celebrações?


Esses eventos servem para reafirmar uma lógica social que alimenta o machismo, o sexismo e a misoginia. É necessário que tomamos consciência das (nossas) práticas que contribuem para reforçar fobias sociais, se queremos uma verdadeira transformação sociocultural.


Primeiro, posso dizer que o que é revelado nesses eventos, é se o novo ser humano em formação tem um pênis como o órgão genital ou tem uma vagina e vulva como o órgão genital. Nada mais que isso. Absolutamente, nada mais. Todo o resto, é sexismo puro, purinho. (te convido a ler os textos sobre sexismo e sobre gênero, que estão nesse blog)


Segundo que reunir familiares e amigos, para aplaudir vagina, vulva e pênis, não me parece algo muito produtivo. Poderíamos encontrar outras maneiras de celebrar uma nova vida e comemorar a maternidade/paternidade. Maneiras essas, que não alimentem a classificação binária - que produz corpos que não são livres para expressar-se da forma como desejam por medo das consequências socioculturais.


Terceiro, reunir a família e amigos, torna ainda mais poderoso a manutenção dessa cultura segregadora. Pois sabemos que convivemos com diversos pensamentos, crenças e valores, e que o recado com essa atitude, junto a tantas pessoas, contribui para afirmar preconceitos. Exemplo, se a gente tem um tio com atitudes lgbtfobica, a gente está contribuindo para a legitimidade dos pensamentos e atitudes dele. Ou se, na família tem diversidade de formas de existência, esse evento é ainda mais segregador e constrangedor.


Durante o desenvolvimento da criança, a força regulatória do gênero evidencia o quanto os sexos são centrados no binarismo homem- -macho-masculino/mulher-fêmea-feminino. Essas relações de gênero impostas por nossa sociedade constituem-se apenas como algumas das muitas situações que ocorrem ao longo da formação da criança. Todos os corpos, gêneros e sexualidades que desviam dos padrões heterocentrados são caracterizados como estranhos, anormais, com suas margens de liberdade cerceadas por um regime heteroterrorista, que mata diariamente pessoas, por esse mesmo motivo.  Não podemos esquecer que pelo 14º ano seguido, o Brasil foi apontado, como o país que mais mata pessoas trans e travestis.


O sexismo codifica toda uma trajetória de vida a partir de um órgão genital, enquanto sabemos que é impossível traçar a vida do novo ser humano, apenas porque um balão estourou e saiu pedacinhos de papeis cor de rosa ou azul.  Além de ser desonesto com o novo ser humano, estamos alimentando a naturalização de determinadas expectativas sociais que desconsideram o protagonismo infantil na medida em que a criança ideal é forjada no imaginário adulto.


Nesse contexto, é urgente a necessidade de começar uma transformação desses valores socioculturais, com a quebra de discursos discriminatórios e preconceituosos que reiteram violências e regras sociais específicas. Será mesmo que não conseguimos encontrar outra forma de celebrar, sem precisar segregar? Será mesmo necessário reunir pessoas para aplaudir órgãos genitais? Será mesmo que precisamos continuar reproduzindo uma cultura que exclui pessoas? Será que não conseguimos sermos melhor que isso, com o conhecimento que já adquirimos? Vamos repensar nossas atitudes, que refletem na sociedade, e contribuem para construção de uma cultura excludente? 


O sexismos tem a capacidade de roubar potências apenas porque o sexo designado precisa performar características, atitudes e escolhas, antes mesmo de se entender como humano, complexo que somos. E ainda, se existem medos e receios que o novo ser humano em formação, não se identifique com o sexo designado ao nascer, e por isso alimentar o sexismo parece ser o caminho, use esse medo, contribuindo positivamente com a comunidade LGBTQIAPN+. Caso, futuramente seu filho ou filha faça escolhas diferente das quais você idealizou, ele ou ela possa encontrar uma sociedade mais acolhedora e que você esteja certo de que contribuiu para que isso acontecesse.  O que acha?


Chá revelação é mais uma prática sexista da nossa sociedade. A conscientização a respeito se faz necessária para uma verdadeira transformação, tanto no seu entorno, quanto a nível social.


REFERÊNCIAS:

  • Artigo “Eu sempre sonhei em ter um neto homem!”: cartografando vídeos de “chás de revelação” no YouTube de Paula Rios de Freitas, Dilton Ribeiro Couto Junior e Felipe Carvalho.

  • Rodrigo França , diretor, ator, filosofo e escritor

  • “O feminismo é para todo mundo” bell hokks

  • “Feminismo em Comum” Marcia” Tiburi

  • “Para Educar Crianças Feministas” e “Sejamos Todos Feministas” Chimamanda Ngozi Adichie

  • “Quem tem medo do Feminismo Negro?” Djamila Ribeiro

  • “O Segundo Sexo” Simone de Beauvoir

  • Aulas do curso Feminismo: Porque Lutamos? da Escola Nacional de Formação Castro Alves


IMAGEM

Artista Gerhard Assini

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